Em [...], numa data social em que
a vida por si só se tornou difícil e azeda, um homem
de meia-idade inventou uma
profissão para si mesmo. No sorriso da sua descoberta, pintou
de verde-escuro um banco
pequenino, passou a manhã esperando que o sol ausente o
secasse com a temperatura
possível. Engomou o fato castanho e escolheu aleatoriamente
uma das muitas esquinas da cidade.
Num cartão pequeno escreveu à máquina: “tiram-se
dúvidas”.
Resistiu pacientemente aos
primeiros vinte e três dias em que ninguém caiu na
tentação de lhe fazer uma pergunta
que fosse. É sabido que as pessoas paravam para ler o
cartão, e que sorriam ou acenavam,
cumprimentando-o. Está escrito que ele ripostava com
a agradabilidade do seu sorriso
curto, cordial, calmo. No vigésimo quarto dia uma criança
sentou-se no chão ao pé dele. Ao
fim de algum tempo, sorriu. O homem também sorriu. A
criança, miopemente, soletrou com
a boca e os olhos: ti-ram-se dú-vi-das… Fechou o seu
sorrisinho e olhou-o intrigada.
Quando se preparava para murmurar algo, ou quando o
homem se preparava para murmurar
algo de volta, um senhor prostrou-se em frente ao
banquinho, à mesinha, ao homem, à
criança, aos seus sorrisos parecidos.
Não havia preços. O certo é que a
criança todos os dias se sentava ali, o homem todos
os dias lá ia, as pessoas
apareciam com mais frequência. A esquina ficou conhecida como a
esquina da dúvida, onde ainda hoje
todos os cafés têm pinturas ou esculturas do homem, o
banco, a mesa, o cartaz e a
criança ao lado — no chão.
Se chovia retiravam-se para um
parapeito. Se fazia vento aconchegavam as pernas um
no outro. De longe, o que se via
era o sorriso calmo, cordial, curto do homem intercalado
com palavras poucas, mansas. As
pessoas sorrindo se afastavam.
Numa tarde fria, bela, chegaram a
acumular-se três pessoas para tirarem dúvidas.
Quando o homem disso se apercebeu,
enternecido, olhou a criança. A criança, surpreendida
com aquele olhar extenso, olhou o
cartaz. Soletrou mais alto do que da primeira vez, para
que todos na fila o ouvissem:
ti-ram-se dú-vi-das…
O tirador de dúvidas afagou o
menino. Disse-lhe um segredo: dúvida é quando não
sabemos bem alguma coisa. O menino
enxugou o ranho transparente do seu lábio, sorriu,
procurou a orelha peluda do homem:
dúvida é amanhã?
Mãos dadas, dúvida virou nome de
esquina.
Ondjaki
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